TRISTAN TZARA E ANDRÉ BRETON
- a liberdade surrealista da palavra
por Fernandes Mendes Vianna
IN:
GÁRGULA – Revista de Literatura. No. 1 - Brasília, 1997. [Instituto Camões. Impressão: Thesaurus Editora]
Ex. bibl. Antonio Miranda
"TOUT EST DADA"
(Grafito no Teatro Odéon, maio de 1968)
No capítulo 3 de L.´Homme Approximatif, Tzara proclama: "La parole seule suffit pour voir" (A palabra basta para ver). A obra desse
genial poeta comprova-o sobejamente. Nascey ele na Romênia , em 1896, nas tornou-se um dos maiores revolucionários da poesía francesa deste século. Outro romeno, o teatrólogo Ionesco, desempenhou papel similar na dramaturgia francesas; aliás já foi comprobada a marca do dadaísmo em Tzara nas suas peças. Entre os principais nomes do surrealismo, Tzara e Breton — que muito admirava seus manifestos dadaístas, conforme comprova-o correspondencia, anterior à ida de Tzara, em 1919, para Paris — foram, sem dúvida, influencias mais marcantes na fundação do surrealismo, à época em que o dadaísmo ainda merecia destaque na revista Littérature dirigidas por Breton. (Depois do afastamento entre os dois líderes desses movimentosl, a partir de 1922, muitos anos estiveram os dois poetas separados). Do que não há dúvida é o fato deo grande prestígio desfrutado por Tzara entre os surrealistas de primeira hora. Tzara voltaria a unir-se ao grupo de Breton, depois das desculptas públicas em 1930.
Foi aos vinte anos sque Tzara, na Suiça, no Cabaret Voltaire, de Zurique, entrou para a história dos vanguardismos europeus, lançando a iconoclastia de Dada. Este nome — encontrado ao acasoss pela mão de Tzara ao abrir um dicionário com uma espátula — significa, em francés, cavalo, na linguagem das crianças, o pau ou cana em que as crianças fingem montar a cavalo; figurativamente significa idéia fixa, opinião, inclinação, projeto favorito ("c´est son dada" : é a sua mania: "il est sur son dada": não pensa em noutra coisa). Essa idéia-imagem da poesía como um pégaso infantil está próxima de uma opinião do filósofo da poesía Gaston Bachelard: "Em sua simplicidade, a imagen não tem necessidade de um saber; ela é a dádiva de uma consciencia ingênua; em sua expressão é uma linguagem criança" (Introdução de A Poética do Espaço). Bachelard reitera isso na Introdução do seu libro seguinte: "Desde que uma imagem poética se renova, mesmo em um só de seus traços, manifesta uma ingenuidade primordial". Lembremos que a etimología mesma de gênio: engendrar. Para os surrealistas é ela a responsável pela espontaneidade esencial a basilar liberdade poética. Bachelard sé da mesma opinião: a ingenuidade "sanciona a imprevisibilidade de palabra" (Introdução de A Poética do Espaço). Prosseghue o filósofo: "Tornar imprevisível a palabra não será uma aprendizagem de liberdade? Que encanto a imaginação poética encontra em zombar das censuras! Antigamente, as Artes Poéticas codificavam as licenças. Mas a poesía contemporânea colocou a liberdadee no próprio corpo da linguagem. A poesia surge então como um "fenómeno de liberdade".
Lembremo-nos que, para Breton — no segundo manifesto do surrealismo em 1930 — afirma que sem a inspiração "nada do que sugere junto dela a liberdade humana… pode curar-nos da ausencia.
Não usa Bachelard a palavra inspiração, msd o papel da imaginação para ele corresponde àquele fundamentalmente atribuído por Breton à inspiração. E bem sabemos da irreverência dadaísta-surrealista se suas zombarias escandalosas, utilizadas como instrumento (juntamente com o automatismo do ditado inconsciente e do uso da transcrição onírica) da grande luta libertária desse movimiento. A partir dele é que surge de fato a poesía como fenómeno de liberdade.; Aliás, na já referida obra de Bachelard, há citações — entre muitas de outros poetas — de versos de Tzara e de Breton. E, no capítulo I, o filósofo insiste na associação infância-devaneio poético, ligando-a ais "poderes do inconsciente" como imaginação produtora de poesía libre. Quanto à importancia de imprevisibilidade na visibilidade visionária da palabra ("A só palavra basta para ver", ou, "só a palabra basta para ver", como diz Tzara), lembremos que Breton defendia a arbitrariedade da imagen: "a mais forte imagen é aquela que apresenta
o grau arbitrário mais alto… a que leva mais tempo para ser traduzida em linguagem prática". Considerava "lamentável a fórmula, mas não passa de um sonho", diz ele no texto inicial do libro "O Revólver de Cabelos Brancos" (1932), aberto com essa declaração: "Imaginação não é um dom, mas por excelencia, objeto de conquista".
Daí condenar a desconfiança frente à imaginação. "Desconfiar, como é feito, desmedidamente, da virtude prática da imaginação, é querer privar-se, a qualquer cxusto, dos socorros da eletricidade… O imaginário é o que tende a tornar-se o real". (Lembro aquí a mesma metáfora dessa eletricidade poética usada pelo grande poeta chileno de vanguarda, Vicente Huidobro, na pregação de seus Manifestos publicados na França, em 1929. Como diz Breton em O Revólver de Cabelo Branco, "as grades estão no interior da gaiolaa", e a poesía "vem de muito alto cantar diante dessas grades". A liberdade do homem está aprisionada dentro dele, e debe la ser libertada da gaiola. A liberdade cor de homem está aprisionada dentro dele, e deve ela ser libertada da gaiola. "Liberdade cor de homem" sé versos que sintetiza o humanismo de Breton, na abertura do poema de Claro de Terra (1923).
Façamos respiração boca a boca com a palabra. "A palavra nasce na boca" (Tzara). Há que salvar a palabra da banalidade das varias comunicabilidades utilitárias, e há que redimí-la, resgatá-la de sua fossilização nos verbetes dos dicionários. Recuperar sua condição de manifestação do ser e seu verbo. Ora, este ser do homem — chame-se inconsciente ou alma — é que debe inaugurar a verbalização poética, e não o contrario. Concordamos com Bachelar quando endossa o peta Jean-Pierre Jouve: "a poesía é uma alma inaugurando uma forma". Para Bachelard "o poeta fala no limite do ser" (A Poética do Espaço"). Não me parece possível desinformar a palabras das fórmulas da "comunicação" de massa, e sua idolatría da visualização eletrônica, sem esse mergulho de profeta cego e vidente como Tirésias e sua lúcida visão da tragedia da hybris do poder político. Portanto, a única saída é opor a esse poder antilibertário e despóticamente anti-individualista, a liberdade do poder poético — ou seja, manifestador da liberdade do ser em cada homem. Tzara tem razão: A "só palabra basta para ver", ou, sssssss"só a palavra basta para ver" ou, "a palavra só (a solitária ária) basta para ver."
Para isso, é necessário crer na palavra como o grande mito poético. Mitopoética resumida lapidarmente pelo gênio de Fernando Pessoa: "O mito é o nada que é o tudo". Acreditar que a função do poeta não é cantar a rosa, mas recriá-la, como dizia Huidobro, já em 1913: "Não cantéis a rosa, ó poeta! Fazei-a florescer no poema". A poesía é o verbo criador humano por excelencia, aquele que torna o homem coadjuvante da Criação, e não um servidor servil da Natureza. Reinsuflar o sopro vital da criação na boca dos homens. Poise la sufoca nas hipócritas comunicabilidades das banais trocas de falas onde se A pelos poderosos; ou é prostituída travestidamente como vínculo de aproximação pelos órgãos de comunicação do rádio, do jornal e da televisão.
A poesía não pode ser essa palavra superficialmente exterior e que não exterioriza o grito do ser, suas rebeldías presas no inconsciente.A palavra poética terá que ser fundamentalmente a voz desse grito das profundezas. Mesmo tragicómico ou absurdo ainda, um dia será o mais psoderoso grito de afirmação da autenticidade. Não pode a poesía resignar-se a calar a "palavra interior" de que fala o pré-socrático Demócrito: "a palavra interior costuma tirar de si mesma as suas alegrías". Isto exige profundidade (palabras ridicularizadas pelos formalistas, coitados!). Profundidade, sim. Comso a defende Jean-Pierre Richard em sua obra Poésie et Profundeur. Para este ensaísta interessam mais as obsessões, à camada anímica subterránea. Habilidades novidadeiras e inteligentes? Já dizia Rimbaud que os hábeis pensarão que o novo são habilidades; mas não se trata disso.
Aliás, diz meu amigo José Godoy Garcia: "Inteligentes somos todos", (Chaplin e Hitler acaso são burros?) Quem diz obsessão diz possessão: aquela que Platão dava como imprescindível aos verdadeiros poetas — os possuídos pelos deuses.
Há um século Rimbaud já viu "a verdadeira vida está ausente. Decididamente estamos fora do mundo". E ainda estamos, até hoje, Jean-Arthur Rimbaud! E lembramos a grande utopia (e só a utopia salvará o Homem) de Breton: "Marx disse: Transformar o mundo; e Rimbaud: mudar a vida; estas duas palavras de orden são para nós uma só". Mas a delegação soviética impediu-o de dizer estas palavras conclusivas do seu discurso utópico de poeta, expulsando-o do recinto dos Escritores Revolucionários, em Paris, em 1930. E, assim, afastando de vez os surrealistas do comunismo.
Como diz Goethe: o poeta não pode pertencer a um Partido. (Poderia completar: pois pertence ao Partido da Poesia). Mas há que sonhar a utopia de um dia poderem unir-se se os poderes da política e os poderes da poesía. Afinal, o amor, o sonho e a morte são a grande trindade do homem. Romantismo? Seja. Ainda bem que não morreu. E caso não possamos nunca os poetas sermos políticos autênticamente poetas ou poetas auténticamente políticos (o que utópicamente embora, é — ou deveria ser — o mesmo), resta-nos sonhar esta utopia. Há uma pergunta de Bachelard que me inquieta, e me provaca um fundo debate. Indaga o grande filósofo da poesía, na obra A Poética do Devaneio, publicada aos setenta e seis anos, depois de uma vida dedicada a amar e estudar a poesías, que ele não consideraba uma fenomenología da alma: "Que outra liberdade psicológica possuímos, afora a liberdade de sonhar? Psicologicamente falando, é no devaneio que somos seres livres." Pois Bachelard considera que "a alma que sonha é uma consciencia de solidão." Talvcez. O surrealista Paul Éluard sintetiza o drama do poeta cidadão no verso: "Fraternellement seul Fraternellement libre".
Lembremos que Tzara após a fase ortodoxamente iconoclasta do dadaísmo (até mais ou menos 1922), chegou a entrar para o Partido Comunista. Membro da Associação para a Defesa da Cultura, foi delegado junto aos escritores republicanos antifranquistas, na Guerra Civil Espanhola. Também teve intensa participação intelectual na Resistência Francesa à ocupação nazista. Mas, em 1930, Breton afastara-se da esperança de união entre os comunistas e os surrealistas. Depois do fim da Segunda Grande Guerra foi um dos principais fundadores do Instituto de Estudos Occitanos.
Faleceu em Paris s, em 1963, aos sesenta e sete anos. Sua poesía está cada vez mais viva. O libro de cento e cinquenta páginas O Homem Aproximativo (1931) é uma das inegáveis obras-primas do surrealismo. Espero que a minha tradução de seus dezenove capítulos desperté a atenção dos que amam a poesía. Quanto a mims, estou traduzindo o libro todo. Algum editor se habilita? Deveria.
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Página publicada em maio de 2021.
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